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Póvoa de Varzim, Porto, Portugal
Num volte-face, quando eu puder, viro menina-mulher.

terça-feira, 15 de março de 2011

Eleonor and I

    Eleonor Rigby,
   há 45 anos que morreste sozinha. Imagino que tenha sido muito desagradável. Mataste-te? Talvez não... Talvez tenhas esperado junto ao guichet. Assim que soasse a campainha e mudassem os dígitos no placard, pimba, corrias a entregar a tua senha entusiasmada! 
    Consigo imaginar-te. A ti e às tuas dores. Por certo tendo, que quando nos sentimos tristes confiamos em todas as outras dores. Confiamos e acolhemos. Fazemos um bolo. Uma espécie de super-dor, com uma cobertura megalómana e um topping salgado absolutamente divinal. E não somos capazes de comer só uma talhada. Tem de ser o bolo todo. Tem de se chorar tudo numa noite. Tem de se morrer tudo agora. Ninguém espera para morrer depois. Ou para matar... E às vezes nem morremos do bolo, mas da quantidade idiota que comemos, porque é bom. 
    Não há ninguém que tenha ido ao teu funeral. Nenhum dos parzinhos que abençoaste à saída da igreja. Nenhum desses recém-casados se lembrou de ti. Nenhuma vez. Tu, que com tanta estima apanhavas os grãozinhos de arroz, um a um, para que não se perdessem as "Felicidades", as "Boa Sorte"s... Lá estava Eleonor, depois da boda, de bunda no ar, apanhando o arroz e colocando num dos seus lindos boiões, com letras bordadas em rótulo de quadrillé. Fazia uns boiões mesmo giros. Dias depois do casamento entregava-os, em mãos, às noivas, alegando que esse tipo de desejos bons não deveriam ser abandonados no chão. Sorria e saía. Lives in a dream!
   A cadeira de baloiço para trás e para a frente, para trás e para a frente, à janela de casa. Todos os dias. Bordando as felicidades ao pano, sorrindo, sonhando. Para quem é esse sorriso? Mais a mais, porque sorris? Será que choravas também, de vez em quando? Ou ficavas sempre assim? Merda. Explica-te. Às vezes penso que ser sozinha, apesar de a multidão ser infernal, deve ser o pior dos males. Às vezes acho que tu e eu somos mal, estamos e ficamos mal. Sempre. Where do they all belong?
    Olha, desgraçada, por tua causa já fiz chover outra vez. Acho indecente. Já te perdoo tudo, na verdade. Sei que sonhavas casar, mas sonhavas só casar? Eu não sonho "só" casar, mas também. Não acontecerá. Igualmente certo não ter um bibelot dos teus em cima da minha cómoda de senhora.  Parece-me mesmo certo, isto. No aparador aonde não vou pentear o meu cabelo de 140 centímetros. No aparador espelhado em que não vou vê-lo  por e tirar o colar que me deu pelos anos. 
    Vou almoçar a casa dos meus pais, que me adoram, aos sábados. As crianças vão encavalitar-se nos velhos. O meu pai vai ser mais feliz. A minha mãe vai ser doce. Eu nunca vou ter inveja de ninguém, nem ciúmes. Eu vou sempre ter alguém que fala ou abraça por perto. Falar ou abraçar é importante. E alguém vai fazer o aviãozinho ao menino, que ele não quer comer. Eu vou ser muito calma e o meu corpo vai funcionar. E só depois é que morro. Sem vontade e naturalmente, como é de ser.  
    Ou então mato-me, e acabo já com esta esperança, já que ela me tem vindo a matar devagarinho. Deixo de ser pedante às pinguinhas. Como o bolo todo e mato-me em condições! A saber bem! À conta! Deixo de me martirizar e de irritar os outros, não necessariamente por essa ordem. Afinal, já vou para aí na quarta ou na quinta fatia... É vício. All the lonely people... Mas tenho medo. Porque é que haveria de ser diferente de ti? Não consigo.
     Vou para a fila. Vou só tirar o papelinho e pronto, fico para aqui encostada, como tu. Pode ser que o bip seja rápido, que estejamos num bom andamento, que o movimento seja célere. Vai ser assim dos pés para as mãos. Vou só sentar-me nesta cadeira enquanto espero. Guardei o número no bolso. Sorrindo e sonhando, de vez em quando. (Mal-me-quer a rodar ao sol (na mão da pequena). Dê lá por onde der, vais tornar a Bem-me-quer. E se me traíres a esperança, fico sempre com a lembrança, da esperança (tua, aquela tão boa) que traí eu a ti.)
    
    
    

quarta-feira, 9 de março de 2011

está numa relação



Gosto que as pessoas se relacionem.
Gosto que as Pessoas se relacionem,

com cabeça, tronco e membros;
com pés e cabeça; 
com princípio, meio e sem-fim.


segunda-feira, 7 de março de 2011

Senha

- Senha!
- Oh, não me lembro! Abre lá!
- Assim não entras!
- Que injustiça.
- Não me interessa nada que amues...
- És um ranhoso, é o que és.
- Sou coerente.
- Orgulhoso, diz antes. Já lá vai um par de horas.
- Óh. Que 'tás a fazer?
- A riscar o chão com a chave. Fiz um coração.
- Broeira.
- 1, 2, limão, limões!
- Não.
- Estetoscópio!
- Nããooo... 
- Esfolei as mãos pa' isto!
- Ninguém te pediu. 
- Mas dói!
- Que raio de queixinhas!
- Vai-te lixar!
-  Também não.
- Não foi uma tentativa, pá.
- Ai não? Ainda me esgotas a paciência. Vou ler quadradinhos.
- Só podes 'tar a brincar.
- Shiu! 
- ... ... ... Aihaiah Mediterrâneo, Agosto, em pleno Verão, Aihai-
- Shiu!!! Não vês que 'tou a ler?!
- Humpf. O SOL A PINO E'EU FAÇO UMA REVOLUÇÃO!
- És insuportável!
- E aquela rapariga, eu já não sei o que dizer. O que fazerrrrrr, o que dizerrrrr, o que fazerrrrrr... 
- Acabou?
- Vá, deixa-me entrar. 
- Senha!
- A senha é... : LOTUS FÉNIX ROTO ESFARRAPADO!
- Não.
- Alecrim! Alecrim, Alecrim aos mo-
- NÃO!
- Judas Iscariotes! 
- Não! Não! Não!
- És pois.
- Já nem sei que te diga.
- Abre a porta!
- Bolas, que chata!
- Uma chata com gabarito. Gio-goi, Zippo, NOFX, Green Day, SG filtro, Fiat, broche, 25 de Agosto, 33300, 66600, pardal, Miguel Ângelo, polaroid, vodka-cola, gaivota furiosa, Golden Grahams, Fight Club, Pegasus, unicórnio, delta, roger, alfa, omega, pi, 3,14, H2O, XPTO, mal-me-quer, camélia, Kafka, rabugenta, bola pinchona, Tomé, super-coelho...
- Tenho o tempo todo do mundo.
- Eu também.
- É só o que soa melhor, caramba!
-  Ah, então já sei!
- Vês...

sexta-feira, 4 de março de 2011

Gato Maltês (notas introdutórias)

      Eu, que conheci bem Maltez, poderia fazer uma descrição sóbria e ordinária deste sujeito, mas já há muito me perdi em bebedeiras que seduzem. Como sua vítima confessa, alego em minha defesa seus olhos distintos; um amarelo (de sua estirpe latina) e o outro assustadoramente verde (da casta nobre nórdica que circula, em média escala, no seu sangue).  Quando pensámos em denuncia-lo em letras e estória, tive de recorrer a um auto-controlo masoquista, para que, não tendesse a defende-lo apaixonadamente, como fazem os amantes. Aqui que me digo não imparcial, pois o impossível está confinado aos deuses, mas fria e real, como me pede a dimensão brutal do enredo. 
É um tipo estranho. Já ouvi descrições reducionistas nestes termos. Na verdade, não é só um "tipo estranho", desenganem-se aqueles que o julgam tão levianamente. Estes julgamentos podres e rápidos pertencem a homens temerários. Outros preferem nem falar. As mulheres, bem as mulheres... Essas não usam de convencionalismos nem clichés. Reflectem paixão quando lhes sai um 'ai' ou um 'ui' emocionado. "Intratável", "Adorável"! Fazem dele um paradoxo que inflama. Não quero que o modelem numa espécie de D. Juan paradigmático, longe disso. Nem num Aramis, nem num vampiro zangado com a vida que foge do amor e da cruz. Obsoletas romantiquices. 
Não tocava piano. Só tocava em pianos. Quando os achava bonitos... Preferia o saxofone à janela, em noites quentes de Verão. Desenhava sombras harmoniosas, engodo de donzelas desorientadas. Às contas desse vício barulhento, preferiu mudar-se para os limites da cidade, para perto de tudo o que é clandestino e marginal. Mas esquecer o luxo e as suas excentricidades era-lhe insuportável. Daí que, o T0 sem divisões que comprou a um homem hediondo, estivesse recheado daquilo que constituía o seu espólio essencial.
Maltez não era gato de fé "por um triz", dizia. Segundo as normas, o seu parto foi atípico, e, por uma nesga, sobreviveu. A vida tinha encontrado um caminho. O monstro revelou-se em sangue, numa cantoria alegreta e inexplicável para os senhores da ciência. Até a palmadinha costumeira rejeitou o choro. Se houvesse um deus, claro está, não permitiria o flagelo. Nisto dizia acreditar, mas a meu ver, a sua não religiosidade não pacífica, era apenas fruto de uma inteligência soberba. "Crer em mim é suficiente para afastar toda e qualquer esperança. Logo, se eu sou evidente, Ele é uma mentira patética e risonha.". Balelas filosóficas. 
Nasceu em Lisboa, essa cidade de santos e ruelas, de romarias e fados, de tanta gente e de ninguém. Mudou-se para o Porto num arrebate jovial. Ficou-se pelo centro. Morar demasiado tempo em Lisboa torna-lo-ia numa pessoa dura. Confiar na luz morta dos Aliados e na simpatia-moribunda das pessoas da Ribeira, torna-lo-ia uma pessoa mole em três tempos. Mas as mulheres do Porto, tinham "um quê, que não se vê daqui de fora, e uma vez que se lá entre, não se pode vir embora". Sim, as mulheres do Porto eram um desafio gratificante...
Tomava-lhes o tenro e doce corpo, presas fáceis, de viciante néctar. Esse tal de sexo, que se conquista a contra-relógio, mas que, mesmo assim, fácil, não perde do encanto a graça. Infalível, afiou-se, tornou-se perfeito e incisivo, como a lâmina de um bisturi. Hipnótico e obstinado, como as voltas da jibóia, desvirginando uma inocente refeição. Sufocando entregues corpos, num frenesim correspondido, numa ingenuidade cândida que precede a morte. Morte. Sensual, como lhes dói. Como os braços e pernas ganham pálidas esperas. 
O Gato é isso. É mau e visceral. Acredita na pura anarquia axiológica, precisamente porque lhe falha crer no Garante. A passividade de Deus provoca-o. A falsa moral dos Homens idem. Somos todos animais disfarçados. Só que, na nossa maioria, nem em nós nos assumimos bichos. Ele assume-se. Vês, Deus, afinal aonde ficam teus mandamentos? E se não nos mandaste, porque nos mandamos tão contrários à nossa índole? Porquê que não é certo eu invejar, cobiçar, irar-me, ougar, preguiçar, pavonear-me e foder quando bem me apetece? Se me apetece porque é que é pecado? E se é pecado, porque é que deixas, se és, enfim, todo poderoso? Fraco. E nós, porque nos castigamos? Deus mandou? Falou com A e B para me infligir as "devidas" punições???! É de ir às lágrimas.
E era. E tantas vezes se prostrou, diante das cinzas da lareira mortificada, sobre um corpo de menina ainda quente, lavado em (m)ágoa. Depois em ódio pela culpa, precisamente por não achar que devesse senti-la. A culpa é estúpida, se só fiz o que me é próprio. Se só me fiz animal em vontades. E Deus ganhava-lhe, ainda, assim (Se a Tua existência começa no meu remorso...). E não havia paz. 
Havia de surgir uma manhã. Uma manhã tranquila, lá está. Sem sentir culpa do capricho-primitivo da morte. Aí, o antagonismo vira clarividência. E numa explosão nietzscheana, tal e qual, posso berrar: Deus é um miserável desenho da possibilidade! Um remate do absurdo para nos tramar a todos! Deus, se existiu, não existe mais. Morreu! E eu sou Senhor e Soberano. Rejo-me pelo meu desejo. Ninguém me pode acertar ou errar, mas antes arrancar-me pedaços e destruir-me, se assim entender, ou adorar-me as entranhas, se me não resistir. Contudo, nunca porque Tu o disseste ou ordenaste! Nunca porque designaste! Acabaram-se os teatrinhos, as anestesias, os eufemismos fofinhos que inventávamos aos burros para que sossegassem o espírito.  Já nada podes! Somos carne. Somos a carne primordial, é certo, mas carne somos(!,) Bichos! Egoístas, Invejosos, Bonitos ou Feios, com Fomes, com Raivas, com Instintos! E somos Belos. E eu posso fazer tudo. E Deus sou afinal, apenas e só, Eu. 

Foi agora.

e mesmo que a noite estivesse de uma quentura nada habitual ainda era dia quinze. Era necessário começar os preparativos, lembrou-se. Afinal, só faltavam seis noites. E ao pensar nisso, reparou nas últimas camélias do ano, que se exibiam em folhos esquálidos e débeis, como que tentando escapar ao protocolo natural. O problema, afinal de contas, era precisamente esse: a mariquice determinista que as coisas teimam em seguir. Ou, por outro lado, mais irritante e ainda mais estúpido: a tendência irreverente que certos fenómenos têm para fugir do plano que a razão humana lhes traçou; seja por emoção ou por comparação, seja por limitação ou amplitude desenfreada, ou simplesmente por serem do contra, mas principalmente por sermos, inevitável e fatalmente idealistas. Absolutamente extenuante ter de apreender estes discursos tão filosoficamente complexos.  Por assim dizer, o planeamento racional a que nos sujeitamos, porque quase sempre falacioso, é um monstro de canseiras e frustrações. E dentro deste mesmo novelo de fibra densa, conseguimos vislumbrar, ao longe e indistintamente, o absurdo da sua essência, a ilusão e a inutilidade que o sustentam. O condicional que existe sempre, a par das interjeições de surpresa, as exclamações de espanto, horror ou histeria perante situações "não programadas" ou "não imaginadas" ou, como gostamos de apelidar no nosso handicap de entes planejadores, "nada normais", são as provas mais clarividentes da asneirada. A 'ideia do normal' é o puto chato que reclama atenção continuamente e que nos obriga a uma responsabilidade idiota sobre uma "normalidade" fantasmagórica. Não é assustador?! Cuidar de uma coisa inexistente e acredita-la é um privilégio do intelecto. Portanto, o "normal" é "normal" (só) ao homem. E, mesmo assim, cá estava ele a pensa-lo como patético. Mas pensava-o, o que, numa perspectiva subjectiva-idealista, é capaz de bastar. Permitiu-se gargalhar. Somos tão parvos, às vezes, por força destas capacidades todas que conseguimos aglutinar no miolo. É indecente que com tantas palavras e maneiras de as conectar que fomos adquirindo, às vezes nos sintamos limitados em explicações ou transmissão detalhada de actividade cognitiva. Deus deve achar um insulto. Afinal, quando é que nos vamos chegar?
As estrelas no céu pareciam purpurinas espalhadas distraidamente por uma ninfa cósmica. Fizera desenhos engraçados e em determinadas zonas parecia ter deixado tombar o frasco... E era aí, nesse nublado de brilho confuso, que se conseguia adivinhar o magnífico dia seguinte. Era nessa magnitude visual que se entendia o calor e a luz de um dia promissor. As probabilidades eram generosas ao lado de uma Primavera bonita e doirada. Uma delícia para qualquer apostador temeroso.
E enquanto pensava nesta multiplicidade de palermices, esticou-se o máximo que podia, até as omoplatas quase se espalmarem na terra e a folga que ficava usualmente abaixo dos rins cessar de existir. A barriga é hoje um chibo fácil do whisky e a tosse seca dos marlboros. Não há pecados sem rasto, ainda assim. Um homem não pode deslizar sem ser apanhado na teia universal do grande julgamento. Mesmo sendo a pena irrisória como uma bela pança, ou a impossibilidade de jogar ténis sem cuspir meio pulmão. Ai, ai... Viv'ós suspiros! Viva a idade mal tratada! Viva a violência endócrina! Sou um fiel apologista da auto-destruição. Da minha auto-destruição, atente-se bem à palavra. Não vou dizer às "pessoas normais" para se embebedarem em fumaradas. A mais, refreio-lhes a vontade de se armarem em pedagogas para com a minha triste pessoa. Se há coisinha que me faz comichão é a maneira como algumas pessoas se sentem à vontade para por as vírgulas, os pontos e os acentos, e muitas vezes usar o back space sem meias medidas, na vida de outrém. Ei!! Você sabe corrigir!! Fantástico!! Sabia que quase todos os árbitros actuais tiveram medíocres performances como jogadores? Seja do que for... E se mudarmos de ângulo: já viu algum desportista habilidoso tornar-se um fiscal de regras? Pois claro que não! Já ganhou demasiado graveto em anúncios televisivos. E a triangulação: e se vier refilar que a vida não é um jogo, eu respondo-lhe que concordo, ( e é o cruzamento:) mas também não é o domingo desportivo em que se aceitam opiniões e palpites de toda a gente. Aliás, debates acesos entre críticos, que na maior parte das vezes não tiveram qualquer participação naqueles jogos em concreto. E é golo!: Pior, sabe quem acaba por ser mais vaiado no término de cada partida? Pois é, a retórica pode ser muito irónica. Ufa, cansa argumentar consigo! Já estou estourado, mas, triunfante, ainda consigo levar a mão ao bolso e mostrar-lhe da beleza de um cartão amarelo. Merda, acabei de ser derrotado em plena compensação! Caramba, você é mesmo bom!! Não não, não se anime tanto, eu é que sou francamente mau.
E era sempre assim. Imaginar o que diriam as pessoas, o que iria nas suas cabeças enxutas, o que comentavam de cada vez que partia, fosse de um lado ou do outro. Coisas. Diziam coisas, concerteza! Não é um comportamento muito comum desaparecer no dia 20 e reaparecer no dia 21, passar um meio ano numa metade do mundo e a outra meia parte na metade respectiva. E ninguém entendia. Na verdade, ninguém perguntava. Um poço tão grande de mazelas e cicatrizes não pode ser abanado abruptamente. Mais vale deixa-lo lá. Estagnado. Devia ter alguma coisa que ver com a morte da esposa. Coitadinha, festejava este ano 37 primaveras. Que parvoada tão grande!!! "Queria dedicar esta música à D. Elvira pelas suas 64 primaveras..." . Santíssimo! É a expressão mais hedionda do cosmos! Traduzir aniversários numa estação do ano! E se a pobre celebrar em Janeiro e em Fevereiro pagar ao barqueiro, hem?! Onde é que fica a Primavera no meio desse dramalhete? Afinal são 64 ou 63 primaveras?? Parece-me pertinente levantar a questão. Pertinente e pateta.
Era tão linda. Linda mesmo. Um cabelo comprido e ondulado matizado pelo sol, uns olhos verdes e translúcidos como algumas algas que aparecem no mar, uns lábios esculpidos a cinzel, um moreno cigano incorrecto em raça e época, um porte altivo, esbelto e feminino. Todo o mundo me quis longe de ti. A terra conspirou contra nós. Às armas, às armas, vamos sair de Portugal!
Não quero, dizias, é o meu país. És muito tradicionalista, tu. Queixavam-se que não era para estarmos juntos, que "não era normal". De que iríamos falar? Que é que possivelmente poderíamos ter para partilhar? Heróis do Mar, tacanho povo, sofredor, habituado... E ela começou a ceder, a menosprezar-se, a achar que era de menos, a achar que não tinha cultura suficiente, que usava dum sotaque parolo e que não sabia conjugar o verbo estar e o fazer em modo! E não sabes. E sim, é tudo isso que me faz perder o nervo contigo, é tudo isso que me faz teimar no teu amor, no nosso amor, na nossa Primavera. Às armas, às armas, e quando as baionetas de aviso falharam, e as adagas passaram à tangente, marchei contra os canhões deles. Mesmo sentindo a voz dos teus avós, dos meus avós, do peso do esplendor de Portugal... Respeitei-te a vontade mais do que respeito o meu berço e o meu sangue. Queres ficar, achas que a tua super-birra vai dobrar a mentalidade de uma nação? E achavas. E depois sofremos. Os meus pais não foram ver-nos casar e eu chorei, tu choraste a seguir. A minha cidade não quis mais saber de mim e eu chorei, tu choraste a seguir. E eu nem percebia como é que depois de se olhar para ti se conseguia ser mau... E em casa vivíamos. Tu e os teus cavalos, eu e os meus livros "cheios de letras". Às vezes eu tentava os cavalos e tu ensinavas-me. Às vezes tu tentavas ler e eu babava ao teu lado. Mas tu tens razão, não temos que fugir. Hei-de amar-te em português, em português de Portugal. Passar as Primaveras todas a desejar-te nua ao Sol. Oh Pátria deixa-me só! Deixa-me passar o resto da vida a choramingar e a ganir. Deixas-me cão abandonado e esperas que te ame ainda? Sozinho. E entre a bruma da memória ela martiriza-me em socalcos. Ela vive ainda em mim, por muito Vergilista e pouco lúcido que isto deva soar. Se eu sempre fui o maluco, o irresponsável, o chanfrado de todo, agora posso pelo menos comportar-me como tal. Depois disto tudo, não acredito que consigam de mais originalidade em sinónimos. E a morte é um absurdo, e a vida só tem um sentido, e essa catrafada toda de questões existencialistas que nos provocam por serem inevitáveis; e as tuas aparições, e os meus degredos...
Os meus degredos semestrais que ninguém compreende... A minha partida antes do equinócio de Março, o meu regresso depois do Verão. Os meus constantes Outonos e Invernos, em Portugal ou abaixo do Equador. Não pode haver Primavera sem ti, muito menos em Portugal. Portugal que te tratou tão mal. Portugal que tu amavas tanto em terra e em alma, e que depois te lixou. Eu até acho, do fundo da minha autoridade académica, que tu me morreste de desgosto prolongado. Não por mim, que eu bem sei o que vai contigo! Por tudo o resto que andava à volta e que nós juramos que não nos ia atingir. E fomos tão fortes! E agora, hem? Tenho de ser forte sozinho??! Não quero. Não vou. Vou chorar à chuva, remoer nas fotografias à lareira, usar uma manta velha como eu estou, queixar-me do casal de jovens vizinho que fala alto e ri-se a torto e a direito. Ter maravilhosos tête-a-tetes com o teu cavalo, que ainda é vivo e que eu estrago com mimos, jogar xadrez com o nosso caseiro ao cair da noite (quando estou aqui em Portugal). Era uma pessoa simpática, o caseiro, nunca perguntava nada de muito profundo e ele era-lhe grato por isso. Mas toda a gente via como em cinco anos ele tinha envelhecido, como só em meia década toda a cabeleira se tornou cal, e as vértebras quebraram, e os olhos desceram e as mãos eram trémulas e inseguras.
Que foleirice de folhetim. A menina do povo e o fidalgo morgado; quem já não está farto do enredo dicotómico? E lá fomos nós contra a muralha que se construiu descaradamente à nossa frente, (qual novela da globo), desarmados e crentes. Claro que demos logo com os cornos na parede! Mas sempre nos levantamos. Betão, granito, madeira...? Pfff!! Nós aceitamos qualquer coisa!! Daí que fomos ganhando força e confiança, fomos ficando resistentes, somos invictos! E, desgraçadamente,.... Começámos a planear! Planeámos tudo. Planeámos filhos, netos, jardins, quadros, um baloiço no alpendre, planeámos até a minha morte antes da tua, porque eu sou mais velho, e era "normal". E no meio das tuas palmadas e ralhos, havia o teu "livra-te!".
Era mel... Eu acho que Deus sempre te prestou mais atenção e lá te fez a vontade. Porra, és mesmo autoritária! E planearam até vir a mulher da fava, planearam até ao céu... E acertamos na mouche, não foi?
Percebe agora a tal treta do planeamento racional com base numa "normalidade" (ridícula) de que lhe falava há pouco? Era tudo uma questão de estatística e nós contornámos todas as probabilidades.( Mas quem as faz?! Quem as define?) Como o facto de ser dia 17, com 28º à sombra, arrisca toda a minha credibilidade como mártir do frio e do recolhimento.
Talvez devesse sair mais cedo este ano, pensou... E ao fazer este rrw, esta analepse sistemática da sua desafortunada vida, sentiu uma calmia que já não experimentava há cinco anos certos. Sentiu-se estranhamente bem. Velho, sim, acabado, cansado, mas bem. E no nano espaço temporal que leva um instante, o jardim pintou-se d'ouro. Fechei os olhos, cruzei os braços debaixo da minha cabeça pesada, senti o sol fazer desenhos pontuais no escuro das minhas pálpebras... Quando foi para os abrir outra vez, ela apareceu-lhe. Leve, solta e branca, a dançar no meio do Sol. Estavam juntos.
É hoje mesmo! Foi agora. De novo Primavera.