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Num volte-face, quando eu puder, viro menina-mulher.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Foi agora.

e mesmo que a noite estivesse de uma quentura nada habitual ainda era dia quinze. Era necessário começar os preparativos, lembrou-se. Afinal, só faltavam seis noites. E ao pensar nisso, reparou nas últimas camélias do ano, que se exibiam em folhos esquálidos e débeis, como que tentando escapar ao protocolo natural. O problema, afinal de contas, era precisamente esse: a mariquice determinista que as coisas teimam em seguir. Ou, por outro lado, mais irritante e ainda mais estúpido: a tendência irreverente que certos fenómenos têm para fugir do plano que a razão humana lhes traçou; seja por emoção ou por comparação, seja por limitação ou amplitude desenfreada, ou simplesmente por serem do contra, mas principalmente por sermos, inevitável e fatalmente idealistas. Absolutamente extenuante ter de apreender estes discursos tão filosoficamente complexos.  Por assim dizer, o planeamento racional a que nos sujeitamos, porque quase sempre falacioso, é um monstro de canseiras e frustrações. E dentro deste mesmo novelo de fibra densa, conseguimos vislumbrar, ao longe e indistintamente, o absurdo da sua essência, a ilusão e a inutilidade que o sustentam. O condicional que existe sempre, a par das interjeições de surpresa, as exclamações de espanto, horror ou histeria perante situações "não programadas" ou "não imaginadas" ou, como gostamos de apelidar no nosso handicap de entes planejadores, "nada normais", são as provas mais clarividentes da asneirada. A 'ideia do normal' é o puto chato que reclama atenção continuamente e que nos obriga a uma responsabilidade idiota sobre uma "normalidade" fantasmagórica. Não é assustador?! Cuidar de uma coisa inexistente e acredita-la é um privilégio do intelecto. Portanto, o "normal" é "normal" (só) ao homem. E, mesmo assim, cá estava ele a pensa-lo como patético. Mas pensava-o, o que, numa perspectiva subjectiva-idealista, é capaz de bastar. Permitiu-se gargalhar. Somos tão parvos, às vezes, por força destas capacidades todas que conseguimos aglutinar no miolo. É indecente que com tantas palavras e maneiras de as conectar que fomos adquirindo, às vezes nos sintamos limitados em explicações ou transmissão detalhada de actividade cognitiva. Deus deve achar um insulto. Afinal, quando é que nos vamos chegar?
As estrelas no céu pareciam purpurinas espalhadas distraidamente por uma ninfa cósmica. Fizera desenhos engraçados e em determinadas zonas parecia ter deixado tombar o frasco... E era aí, nesse nublado de brilho confuso, que se conseguia adivinhar o magnífico dia seguinte. Era nessa magnitude visual que se entendia o calor e a luz de um dia promissor. As probabilidades eram generosas ao lado de uma Primavera bonita e doirada. Uma delícia para qualquer apostador temeroso.
E enquanto pensava nesta multiplicidade de palermices, esticou-se o máximo que podia, até as omoplatas quase se espalmarem na terra e a folga que ficava usualmente abaixo dos rins cessar de existir. A barriga é hoje um chibo fácil do whisky e a tosse seca dos marlboros. Não há pecados sem rasto, ainda assim. Um homem não pode deslizar sem ser apanhado na teia universal do grande julgamento. Mesmo sendo a pena irrisória como uma bela pança, ou a impossibilidade de jogar ténis sem cuspir meio pulmão. Ai, ai... Viv'ós suspiros! Viva a idade mal tratada! Viva a violência endócrina! Sou um fiel apologista da auto-destruição. Da minha auto-destruição, atente-se bem à palavra. Não vou dizer às "pessoas normais" para se embebedarem em fumaradas. A mais, refreio-lhes a vontade de se armarem em pedagogas para com a minha triste pessoa. Se há coisinha que me faz comichão é a maneira como algumas pessoas se sentem à vontade para por as vírgulas, os pontos e os acentos, e muitas vezes usar o back space sem meias medidas, na vida de outrém. Ei!! Você sabe corrigir!! Fantástico!! Sabia que quase todos os árbitros actuais tiveram medíocres performances como jogadores? Seja do que for... E se mudarmos de ângulo: já viu algum desportista habilidoso tornar-se um fiscal de regras? Pois claro que não! Já ganhou demasiado graveto em anúncios televisivos. E a triangulação: e se vier refilar que a vida não é um jogo, eu respondo-lhe que concordo, ( e é o cruzamento:) mas também não é o domingo desportivo em que se aceitam opiniões e palpites de toda a gente. Aliás, debates acesos entre críticos, que na maior parte das vezes não tiveram qualquer participação naqueles jogos em concreto. E é golo!: Pior, sabe quem acaba por ser mais vaiado no término de cada partida? Pois é, a retórica pode ser muito irónica. Ufa, cansa argumentar consigo! Já estou estourado, mas, triunfante, ainda consigo levar a mão ao bolso e mostrar-lhe da beleza de um cartão amarelo. Merda, acabei de ser derrotado em plena compensação! Caramba, você é mesmo bom!! Não não, não se anime tanto, eu é que sou francamente mau.
E era sempre assim. Imaginar o que diriam as pessoas, o que iria nas suas cabeças enxutas, o que comentavam de cada vez que partia, fosse de um lado ou do outro. Coisas. Diziam coisas, concerteza! Não é um comportamento muito comum desaparecer no dia 20 e reaparecer no dia 21, passar um meio ano numa metade do mundo e a outra meia parte na metade respectiva. E ninguém entendia. Na verdade, ninguém perguntava. Um poço tão grande de mazelas e cicatrizes não pode ser abanado abruptamente. Mais vale deixa-lo lá. Estagnado. Devia ter alguma coisa que ver com a morte da esposa. Coitadinha, festejava este ano 37 primaveras. Que parvoada tão grande!!! "Queria dedicar esta música à D. Elvira pelas suas 64 primaveras..." . Santíssimo! É a expressão mais hedionda do cosmos! Traduzir aniversários numa estação do ano! E se a pobre celebrar em Janeiro e em Fevereiro pagar ao barqueiro, hem?! Onde é que fica a Primavera no meio desse dramalhete? Afinal são 64 ou 63 primaveras?? Parece-me pertinente levantar a questão. Pertinente e pateta.
Era tão linda. Linda mesmo. Um cabelo comprido e ondulado matizado pelo sol, uns olhos verdes e translúcidos como algumas algas que aparecem no mar, uns lábios esculpidos a cinzel, um moreno cigano incorrecto em raça e época, um porte altivo, esbelto e feminino. Todo o mundo me quis longe de ti. A terra conspirou contra nós. Às armas, às armas, vamos sair de Portugal!
Não quero, dizias, é o meu país. És muito tradicionalista, tu. Queixavam-se que não era para estarmos juntos, que "não era normal". De que iríamos falar? Que é que possivelmente poderíamos ter para partilhar? Heróis do Mar, tacanho povo, sofredor, habituado... E ela começou a ceder, a menosprezar-se, a achar que era de menos, a achar que não tinha cultura suficiente, que usava dum sotaque parolo e que não sabia conjugar o verbo estar e o fazer em modo! E não sabes. E sim, é tudo isso que me faz perder o nervo contigo, é tudo isso que me faz teimar no teu amor, no nosso amor, na nossa Primavera. Às armas, às armas, e quando as baionetas de aviso falharam, e as adagas passaram à tangente, marchei contra os canhões deles. Mesmo sentindo a voz dos teus avós, dos meus avós, do peso do esplendor de Portugal... Respeitei-te a vontade mais do que respeito o meu berço e o meu sangue. Queres ficar, achas que a tua super-birra vai dobrar a mentalidade de uma nação? E achavas. E depois sofremos. Os meus pais não foram ver-nos casar e eu chorei, tu choraste a seguir. A minha cidade não quis mais saber de mim e eu chorei, tu choraste a seguir. E eu nem percebia como é que depois de se olhar para ti se conseguia ser mau... E em casa vivíamos. Tu e os teus cavalos, eu e os meus livros "cheios de letras". Às vezes eu tentava os cavalos e tu ensinavas-me. Às vezes tu tentavas ler e eu babava ao teu lado. Mas tu tens razão, não temos que fugir. Hei-de amar-te em português, em português de Portugal. Passar as Primaveras todas a desejar-te nua ao Sol. Oh Pátria deixa-me só! Deixa-me passar o resto da vida a choramingar e a ganir. Deixas-me cão abandonado e esperas que te ame ainda? Sozinho. E entre a bruma da memória ela martiriza-me em socalcos. Ela vive ainda em mim, por muito Vergilista e pouco lúcido que isto deva soar. Se eu sempre fui o maluco, o irresponsável, o chanfrado de todo, agora posso pelo menos comportar-me como tal. Depois disto tudo, não acredito que consigam de mais originalidade em sinónimos. E a morte é um absurdo, e a vida só tem um sentido, e essa catrafada toda de questões existencialistas que nos provocam por serem inevitáveis; e as tuas aparições, e os meus degredos...
Os meus degredos semestrais que ninguém compreende... A minha partida antes do equinócio de Março, o meu regresso depois do Verão. Os meus constantes Outonos e Invernos, em Portugal ou abaixo do Equador. Não pode haver Primavera sem ti, muito menos em Portugal. Portugal que te tratou tão mal. Portugal que tu amavas tanto em terra e em alma, e que depois te lixou. Eu até acho, do fundo da minha autoridade académica, que tu me morreste de desgosto prolongado. Não por mim, que eu bem sei o que vai contigo! Por tudo o resto que andava à volta e que nós juramos que não nos ia atingir. E fomos tão fortes! E agora, hem? Tenho de ser forte sozinho??! Não quero. Não vou. Vou chorar à chuva, remoer nas fotografias à lareira, usar uma manta velha como eu estou, queixar-me do casal de jovens vizinho que fala alto e ri-se a torto e a direito. Ter maravilhosos tête-a-tetes com o teu cavalo, que ainda é vivo e que eu estrago com mimos, jogar xadrez com o nosso caseiro ao cair da noite (quando estou aqui em Portugal). Era uma pessoa simpática, o caseiro, nunca perguntava nada de muito profundo e ele era-lhe grato por isso. Mas toda a gente via como em cinco anos ele tinha envelhecido, como só em meia década toda a cabeleira se tornou cal, e as vértebras quebraram, e os olhos desceram e as mãos eram trémulas e inseguras.
Que foleirice de folhetim. A menina do povo e o fidalgo morgado; quem já não está farto do enredo dicotómico? E lá fomos nós contra a muralha que se construiu descaradamente à nossa frente, (qual novela da globo), desarmados e crentes. Claro que demos logo com os cornos na parede! Mas sempre nos levantamos. Betão, granito, madeira...? Pfff!! Nós aceitamos qualquer coisa!! Daí que fomos ganhando força e confiança, fomos ficando resistentes, somos invictos! E, desgraçadamente,.... Começámos a planear! Planeámos tudo. Planeámos filhos, netos, jardins, quadros, um baloiço no alpendre, planeámos até a minha morte antes da tua, porque eu sou mais velho, e era "normal". E no meio das tuas palmadas e ralhos, havia o teu "livra-te!".
Era mel... Eu acho que Deus sempre te prestou mais atenção e lá te fez a vontade. Porra, és mesmo autoritária! E planearam até vir a mulher da fava, planearam até ao céu... E acertamos na mouche, não foi?
Percebe agora a tal treta do planeamento racional com base numa "normalidade" (ridícula) de que lhe falava há pouco? Era tudo uma questão de estatística e nós contornámos todas as probabilidades.( Mas quem as faz?! Quem as define?) Como o facto de ser dia 17, com 28º à sombra, arrisca toda a minha credibilidade como mártir do frio e do recolhimento.
Talvez devesse sair mais cedo este ano, pensou... E ao fazer este rrw, esta analepse sistemática da sua desafortunada vida, sentiu uma calmia que já não experimentava há cinco anos certos. Sentiu-se estranhamente bem. Velho, sim, acabado, cansado, mas bem. E no nano espaço temporal que leva um instante, o jardim pintou-se d'ouro. Fechei os olhos, cruzei os braços debaixo da minha cabeça pesada, senti o sol fazer desenhos pontuais no escuro das minhas pálpebras... Quando foi para os abrir outra vez, ela apareceu-lhe. Leve, solta e branca, a dançar no meio do Sol. Estavam juntos.
É hoje mesmo! Foi agora. De novo Primavera.

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