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Num volte-face, quando eu puder, viro menina-mulher.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Gato Maltês (notas introdutórias)

      Eu, que conheci bem Maltez, poderia fazer uma descrição sóbria e ordinária deste sujeito, mas já há muito me perdi em bebedeiras que seduzem. Como sua vítima confessa, alego em minha defesa seus olhos distintos; um amarelo (de sua estirpe latina) e o outro assustadoramente verde (da casta nobre nórdica que circula, em média escala, no seu sangue).  Quando pensámos em denuncia-lo em letras e estória, tive de recorrer a um auto-controlo masoquista, para que, não tendesse a defende-lo apaixonadamente, como fazem os amantes. Aqui que me digo não imparcial, pois o impossível está confinado aos deuses, mas fria e real, como me pede a dimensão brutal do enredo. 
É um tipo estranho. Já ouvi descrições reducionistas nestes termos. Na verdade, não é só um "tipo estranho", desenganem-se aqueles que o julgam tão levianamente. Estes julgamentos podres e rápidos pertencem a homens temerários. Outros preferem nem falar. As mulheres, bem as mulheres... Essas não usam de convencionalismos nem clichés. Reflectem paixão quando lhes sai um 'ai' ou um 'ui' emocionado. "Intratável", "Adorável"! Fazem dele um paradoxo que inflama. Não quero que o modelem numa espécie de D. Juan paradigmático, longe disso. Nem num Aramis, nem num vampiro zangado com a vida que foge do amor e da cruz. Obsoletas romantiquices. 
Não tocava piano. Só tocava em pianos. Quando os achava bonitos... Preferia o saxofone à janela, em noites quentes de Verão. Desenhava sombras harmoniosas, engodo de donzelas desorientadas. Às contas desse vício barulhento, preferiu mudar-se para os limites da cidade, para perto de tudo o que é clandestino e marginal. Mas esquecer o luxo e as suas excentricidades era-lhe insuportável. Daí que, o T0 sem divisões que comprou a um homem hediondo, estivesse recheado daquilo que constituía o seu espólio essencial.
Maltez não era gato de fé "por um triz", dizia. Segundo as normas, o seu parto foi atípico, e, por uma nesga, sobreviveu. A vida tinha encontrado um caminho. O monstro revelou-se em sangue, numa cantoria alegreta e inexplicável para os senhores da ciência. Até a palmadinha costumeira rejeitou o choro. Se houvesse um deus, claro está, não permitiria o flagelo. Nisto dizia acreditar, mas a meu ver, a sua não religiosidade não pacífica, era apenas fruto de uma inteligência soberba. "Crer em mim é suficiente para afastar toda e qualquer esperança. Logo, se eu sou evidente, Ele é uma mentira patética e risonha.". Balelas filosóficas. 
Nasceu em Lisboa, essa cidade de santos e ruelas, de romarias e fados, de tanta gente e de ninguém. Mudou-se para o Porto num arrebate jovial. Ficou-se pelo centro. Morar demasiado tempo em Lisboa torna-lo-ia numa pessoa dura. Confiar na luz morta dos Aliados e na simpatia-moribunda das pessoas da Ribeira, torna-lo-ia uma pessoa mole em três tempos. Mas as mulheres do Porto, tinham "um quê, que não se vê daqui de fora, e uma vez que se lá entre, não se pode vir embora". Sim, as mulheres do Porto eram um desafio gratificante...
Tomava-lhes o tenro e doce corpo, presas fáceis, de viciante néctar. Esse tal de sexo, que se conquista a contra-relógio, mas que, mesmo assim, fácil, não perde do encanto a graça. Infalível, afiou-se, tornou-se perfeito e incisivo, como a lâmina de um bisturi. Hipnótico e obstinado, como as voltas da jibóia, desvirginando uma inocente refeição. Sufocando entregues corpos, num frenesim correspondido, numa ingenuidade cândida que precede a morte. Morte. Sensual, como lhes dói. Como os braços e pernas ganham pálidas esperas. 
O Gato é isso. É mau e visceral. Acredita na pura anarquia axiológica, precisamente porque lhe falha crer no Garante. A passividade de Deus provoca-o. A falsa moral dos Homens idem. Somos todos animais disfarçados. Só que, na nossa maioria, nem em nós nos assumimos bichos. Ele assume-se. Vês, Deus, afinal aonde ficam teus mandamentos? E se não nos mandaste, porque nos mandamos tão contrários à nossa índole? Porquê que não é certo eu invejar, cobiçar, irar-me, ougar, preguiçar, pavonear-me e foder quando bem me apetece? Se me apetece porque é que é pecado? E se é pecado, porque é que deixas, se és, enfim, todo poderoso? Fraco. E nós, porque nos castigamos? Deus mandou? Falou com A e B para me infligir as "devidas" punições???! É de ir às lágrimas.
E era. E tantas vezes se prostrou, diante das cinzas da lareira mortificada, sobre um corpo de menina ainda quente, lavado em (m)ágoa. Depois em ódio pela culpa, precisamente por não achar que devesse senti-la. A culpa é estúpida, se só fiz o que me é próprio. Se só me fiz animal em vontades. E Deus ganhava-lhe, ainda, assim (Se a Tua existência começa no meu remorso...). E não havia paz. 
Havia de surgir uma manhã. Uma manhã tranquila, lá está. Sem sentir culpa do capricho-primitivo da morte. Aí, o antagonismo vira clarividência. E numa explosão nietzscheana, tal e qual, posso berrar: Deus é um miserável desenho da possibilidade! Um remate do absurdo para nos tramar a todos! Deus, se existiu, não existe mais. Morreu! E eu sou Senhor e Soberano. Rejo-me pelo meu desejo. Ninguém me pode acertar ou errar, mas antes arrancar-me pedaços e destruir-me, se assim entender, ou adorar-me as entranhas, se me não resistir. Contudo, nunca porque Tu o disseste ou ordenaste! Nunca porque designaste! Acabaram-se os teatrinhos, as anestesias, os eufemismos fofinhos que inventávamos aos burros para que sossegassem o espírito.  Já nada podes! Somos carne. Somos a carne primordial, é certo, mas carne somos(!,) Bichos! Egoístas, Invejosos, Bonitos ou Feios, com Fomes, com Raivas, com Instintos! E somos Belos. E eu posso fazer tudo. E Deus sou afinal, apenas e só, Eu. 

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